A denúncia de que veículos zero-quilômetro avariados no transporte estão sendo consertados em concessionárias e vendidos como intactos, divulgada por um ex-líder sindical desde o ano passado, não é nova. Em 2015, o Jornal do Carro, suplemento do jornal Estadão, divulgou que entre um e três de cada dez veículos vendidos como zero-quilômetro de todas as marcas sofreram algum tipo de avaria. Eles são consertados por lojistas e vendidos em todo o país. Alguns casos chegaram ao Poder Judiciário. Esse número pode chegar a 587,5 mil unidades num único ano.

Após firmar acordo milionário com Vittorio Medioli, proprietário do grupo Sada, em 29 de janeiro de 2021, o ex-líder sindical Afonso Rodrigues de Carvalho deu início a uma série de denúncias relativas a avarias de veículos no transporte contra a única transportadora de veículos de grande porte que não está alinhada ao chamado cartel dos cegonheiros, a Transportes Gabardo, que tem sede em Porto alegre (RS). Carvalho prestou serviços por mais de 20 anos à empresa, enquanto denunciava os desmandos do grupo para o qual passou a trabalhar. Mas o assunto atinge todas as demais transportadoras e concessionárias. Segundo o jornal Estadão, é uma prática corriqueira que alcança todas as marcas produzidas e importadas comercializadas no Brasil. Um cegonheiro que opera no cartel foi ouvido pelo site Livre Concorrência e confirmou:
“Infelizmente, aqui também é assim”.
O suplemento Jornal do Carro, do Estadão, em sua edição de 27 de abril de 2015 – há pouco mais de sete anos – trouxe à tona a denúncia que teve tom suave e de alerta aos compradores de veículos zero-quilômetro. O texto informou:
“Lojistas confirmam que esse tipo de ocorrência é bastante comum. As colisões, pequenas ou não, são frequentes durante o transporte entre a fábrica e a concessionária. Podem acontecer em manobras para o caminhão-cegonha ou mesmo no pátio das lojas”.

Ao Estadão, um gerente de concessionária da Volkswagen que pediu anonimato afirmou que coisas leves que não afetam a pintura e que possam ser resolvidas com a intervenção de um martelinho de ouro ele até aceita.
A publicação traz ainda, declaração do vendedor Michel Santos, onde revela que após comercializar um Volkswagen Golf, em 2011, foi descoberto que o veículo havia sofrido avaria, quando caiu da cegonha. Consertado logo após, foi vendido como zero-quilômetro. Ele relatou que resolveu com a concessionária, pagando a diferença e pegando outro veículo. Segundo Santos, “três em cada dez” zero-quilômetro” escondem algum conserto que nunca é informado ao comprador.

Outro dado revelado no mesmo suplemento é que alguns concessionários divergem desse número, ao declararem que um em cada dez veículos sofrem pequenas avarias que são resolvidas antes da venda, sem que o comprador fique sabendo.
O site Livre Concorrência recebeu informação de um motorista cegonheiro – pediu anonimato para não perder o emprego e o áudio está na redação – que trabalha para uma transportadora agregada à Tegma Gestão Logística. Sobre as avarias, ele garante:
“Infelizmente aqui no cartel também é assim. Ninguém é diferente nesse sistema. O grande detalhe é que quem paga realmente é o motorista. Elas [as transportadoras] colocam todo encargo de qualquer avaria ou prejuízo na conta do motorista que em várias oportunidades compra a avaria, paga por ela, pra não perder o serviço. Isso acontece comigo também. É difícil.”
Vício oculto
Numa rápida pesquisa, pode-se ter conhecimento de casos que foram resolvidos judicialmente. No Paraná, uma consumidora que adquiriu um Fiat Siena avariado conseguiu um novo. A ação foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que lhe assegurou o direito levando em consideração o “vício oculto”.
Outra consumidora de Goiás venceu a disputa judicial após comprar um veículo da marca Ford, que havia sofrido “retoques na pintura”. A concessionária chegou a alegar que “o único problema era a pintura que não era original de fábrica, sendo certo que isso não importou na utilização do bem, já que a pintura é um mero acessório e não afeta o funcionamento regular do veículo”. Não foi acolhida a tentativa de justificação.
Nota da Redação
O site Livre Concorrência fez uma média em relação ao número de veículos que podem ter sofrido avarias para chegar aos números. Levou em conta as 1.958.405 unidades – veículos e comerciais leves – vendidas ao longo do ano de 2021 – e aplicou o percentual de 15%, já que as referências na matéria do suplemento do Estadão variam entre os 10% e os 30%.
Nota da Redação
O site Livre Concorrência esclarece que é contra qualquer ação que resulte em prejuízo ao consumidor e defende uma investigação profunda por parte das autoridades constituídas, que atinja todas as concessionárias do país. Isso vale para consertos de avarias em carros novos sem o conhecimento do comprador, assim como outros crimes e irregularidades praticados pelo cartel dos cegonheiros: abuso de poder econômico, eliminação da concorrência, fixação artificial de preços, violência e divisão de mercado.